Tanatologia forense
A tanatologia forense é a parte da medicina legal que estuda a morte, os fenômenos cadavéricos e a legislação pertinente.
Diagnóstico do tempo de morte
Por razões de direito a heranças, o artigo 8 do Código Civil estabelece que, caso dois indivíduos faleçam na mesma ocasião, não havendo provas de premoriência (um indivíduo faleceu antes do outro), presumir-se-á comoriência (ambos faleceram simultaneamente).
Isso leva às definições do tempo de morte:
- Morte súbita: instantânea;
- Morte mediata: horas;
- Morte agônica ou tardia: dias ou semanas.
A perícia que averigua o tempo de sobrevivência vai, primeiro, verificar as lesões, pois há algumas que causam morte rapidamente. Em seguida, busca-se pelas docimásias (provas) da agonia, que são hepáticas (glicogênio) e suprarrenais (epinefrina): se não houver depleção dessas reservas, significa que a morte foi instantânea, pois o organismo sequer pôde reagir ao trauma.
Diagnóstico da realidade da morte
A personalidade jurídica termina na morte, então é necessário um parâmetro objetivo de quando ela ocorre. Atualmente, esse parâmetro inclui a morte encefálica, o que só foi possível após a possibilidade de manutenção artificial de respiração e circulação. Os elementos diagnósticos básicos da morte são:
- Ausência de circulação;
- Ausência de respiração;
- Acidificação dos líquidos tissulares;
- Ausência de funções encefálicas.
Morte encefálica
Definida como o estágio em que é impossível a recuperação das funções do tronco encefálico, especialmente do bulbo, independentemente de sua causa (isquêmica, anóxica, ou metabólica).
É difícil diferenciá-la de situações em que a recuperação neurológica ainda é possível (ex.: coma), portanto, existem critérios para seu diagnóstico:
- Descartar causas reversíveis de coma capazes de mimetizar morte encefálica: situações em que as funções corporais estão extremamente rebaixadas (morte aparente), como hipotermia, choque, intoxicação por drogas, e distúrbios metabólicos. A partir daí, inicia-se o protocolo para diagnóstico propriamente dito de morte encefálica, caso a causa mortis seja conhecida (caso contrário, o transplante de órgãos não será possível, então não há por que iniciá-lo);
- Exame clínico: pesquisa de reflexos de nervos cranianos (pois reflexos medulares presentes não descartam morte encefálica) e de resposta a estímulo doloroso na face;
- Teste de apneia: pesquisa de movimento ventilatório espontâneo, após desconexão do ventilador;
- Exames complementares: EEG, angiografia (padrão-ouro).
A resolução CFM 2173/2017 estabelece mais detalhadamente que:
Art. 1º. Os procedimentos para determinação de morte encefálica (ME) devem ser iniciados em todos os pacientes que apresentem coma não perceptivo, ausência de reatividade supraespinhal e apneia persistente, e que atendam a todos os seguintes pré-requisitos:
a) Lesão encefálica de causa conhecida, irreversível e capaz de causar ME;
b) Ausência de fatores tratáveis que possam confundir o diagnóstico de ME;
c) Tratamento e observação em hospital pelo mínimo de 6 horas (se encefalopatia hipóxico-isquêmica, mínimo de 24 horas);
d) Temperatura superior a 35ºC, saturação de O2 acima de 94% e PAS maior ou igual a 100 mmHG ou pressão arterial média maior ou igual a 65mmHg para adultos.
Art. 2º. É obrigatória a realização mínima dos seguintes procedimentos para determinação da ME:
a) Dois exames clínicos que confirmem coma não perceptivo e ausência de função do tronco encefálico;
b) Teste de apneia que confirme ausência de movimentos respiratórios após estimulação máxima dos centros respiratórios;
c) Exame complementar que comprove ausência de atividade encefálica.
Art. 3º. O exame clínico deve demonstrar de forma inequívoca a existência das seguintes condições:
a) coma não perceptivo; b) ausência de reatividade supraespinhal manifestada pela ausência dos reflexos fotomotor, córneo palpebral, oculocefálico, vestíbulo calórico e de tosse.
§1º Serão realizados dois exames clínicos, cada um deles por um médico diferente, especificamente capacitado a realizar esses procedimentos para a determinação de morte encefálica.
§2º Serão considerados especificamente capacitados médicos com no mínimo um ano de experiência no atendimento de pacientes em coma e que tenham acompanhado ou realizado pelo menos dez determinações de ME ou curso de capacitação para determinação em ME, conforme anexo III desta Resolução.
§3º Um dos médicos especificamente capacitados deverá ser especialista em uma das seguintes especialidades: medicina intensiva, medicina intensiva pediátrica, neurologia, neurologia pediátrica, neurocirurgia ou medicina de emergência. Na indisponibilidade de qualquer um dos especialistas anteriormente citados, o procedimento deverá ser concluído por outro médico especificamente capacitado.
§4º Em crianças com menos de 2 (dois) anos o intervalo mínimo de tempo entre os dois exames clínicos variará conforme a faixa etária: dos sete dias completos (recém nato a termo) até dois meses incompletos será de 24 horas; de dois a 24 meses incompletos será de doze horas. Acima de 2 (dois) anos de idade o intervalo mínimo será de 1 (uma) hora.
Art. 4º. O teste de apneia deverá ser realizado uma única vez por um dos médicos responsáveis pelo exame clínico e deverá comprovar ausência de movimentos respiratórios na presença de hipercapnia (PaCO2 > 55mmHg).
Art. 5º. O exame complementar deve comprovar de forma inequívoca uma das seguintes condições:
a) ausência de perfusão sanguínea encefálica ou
b) ausência de atividade metabólica encefálica ou
c) ausência de atividade elétrica encefálica.
Art. 7º. As conclusões do exame clínico e o resultado do exame complementar deverão ser registrados pelos médicos examinadores no Termo de Declaração de Morte Encefálica e no prontuário do paciente ao final de cada etapa.
Art. 8º. O médico assistente do paciente ou seu substituto deverá esclarecer aos familiares do paciente sobre o processo de diagnóstico de ME e os resultados de cada etapa, registrando no prontuário do paciente essas comunicações.
Art. 9º. Os médicos que determinaram o diagnóstico de ME ou médicos assistentes ou seus substitutos deverão preencher a Declaração de Óbito definindo como data e hora da morte aquela que corresponde ao momento da conclusão do último procedimento para determinação da ME.
Parágrafo único. Nos casos de morte por causas externas a Declaração de Óbito será de responsabilidade do médico legista, que deverá receber o relatório de encaminhamento médico e uma cópia do Termo de Declaração de Morte Encefálica.
Art. 10º. A direção técnica do hospital onde ocorrerá a determinação de ME deverá indicar os médicos especificamente capacitados para realização dos exames clínicos e complementares.
§1º Nenhum desses médicos poderá participar de equipe de remoção e transplante, conforme estabelecido no art. 3º da Lei nº 9.434/1997 e no Código de Ética Médica.
§2º Essas indicações e suas atualizações deverão ser encaminhadas para a Central Estadual de Transplantes (CET).
Além disso, o anexo I dessa resolução permite “a presença de médico de confiança da família do paciente para acompanhar os procedimentos de determinação de ME, desde que a demora no comparecimento desse profissional não inviabilize o diagnóstico. Os contatos com o médico escolhido serão de responsabilidade dos familiares ou do responsável legal. O profissional indicado deverá comparecer nos horários estabelecidos pela equipe de determinação da ME”.
Uma vez constatada a morte encefálica em paciente não doador de órgãos, a resolução CFM 1826/2007 considera legal e ética a suspensão dos procedimentos de suporte terapêuticos.
Transplante de órgãos
No Brasil, é regido pela Lei dos Transplantes (lei 9434/1997). Ela determina que a doação de órgãos, exceto sangue, esperma, e óvulos (regidos por outras leis) é permitida, em vida ou post mortem, de forma gratuita.
Doação post mortem
A lei estabelece que:
- Órgãos diretamente relacionados à causa mortis não podem ser doadas, e, se houver dúvida do acometimento de órgão em morte violenta ou suspeita, o IML será acionado;
- Em morte violenta ou suspeita, o transplante precederá o encaminhamento ao IML;
- A decisão final pelo transplante é da família (cônjuge ou parente de até 2º grau, respeitando a linha sucessória) ou dos responsáveis legais (em caso de juridicamente incapaz), não sendo permitida a doação de órgãos de corpos não identificados ou sem familiares vivos;
- Em caso de divergência entre familiares, a lei não é tão clara, mas, em geral, busca-se o consenso antes de prosseguir com a doação.
Havendo suspeita de morte encefálica em serviço que não possua médico capaz de constatá-la, a Central Estadual de Transplantes deve ser acionada em caráter de urgência para providenciar um responsável para tal. Do mesmo modo, constatada morte encefálica, a Central enviará profissionais capazes de remoção do tecido, órgão, ou parte do corpo humano, caso isso não possa ser feito pelo próprio serviço.
As Centrais são responsáveis também pela alocação dos órgãos, conforme:
- Compatibilidade;
- Distância e condições de transporte e tempo de deslocamento do receptor (considerando o tempo de isquemia de cada órgão);
- Urgência.
Para doação post mortem, não se pode destinar o órgão a uma pessoa específica, ao contrário do que ocorre na doação em vida, em que o órgão necessariamente será destinado a um familiar.
As filas são estaduais, e o paciente não pode estar em mais de uma fila, mas as Centrais se articulam, considerando que um paciente pode estar mais próximo de uma cidade que realiza transplantes em outro estado que em seu próprio estado. No entanto, quando um paciente se aproxima do topo da fila, é recomendado que ele fique próximo ao local que realiza às operações, e alguns hospitais chegam a oferecer residência temporária nesse caso. A FAB também auxilia nessa logística.
Finalmente, o artigo 52 do decreto 9175/2017, “na hipótese de doação post mortem, será resguardada a identidade dos doadores em relação aos seus receptores e dos receptores em relação à família dos doadores”. A lei não prevê exceções, de modo que elas exigem autorização judicial.
Doação em vida
A lei estabelece que:
- Pessoas juridicamente capazes podem dispor gratuitamente de tecidos, órgãos, e partes do corpo humano para fins terapêuticos:
- Em cônjuges ou parentes consanguíneos (exclui-se parentesco por afinidade e adoção) até o 4º grau;
- Em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial (exceto para medula óssea, em que qualquer doação é permitida);
- Menores de idade e incapazes, mesmo com consentimento dos pais, não podem ser doadores em vida, exceto de medula óssea, com autorização judicial e consentimento de ambos os pais;
- Gestantes podem ser doadoras de medula óssea caso haja atestado médico informando que não há risco para o feto, responsabilidade que a maioria dos médicos se recusa a assumir;
- Doador será informado sobre as consequências e riscos possíveis da doação, em documento oferecido a sua leitura, com assinatura de duas testemunhas presentes no ato;
- O doador especificará em documento escrito, qual tecido, órgão, ou parte do corpo humano está doando;
- A retirada só será permitida se corresponder a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável e inadiável do receptor;
- A doação poderá ser revogada pelo doador a qualquer momento, antes de iniciado o procedimento.
Referência(s)
Aulas da professora Luciana de Paula Lima Gazzola.