Dores recorrentes em pediatria: cefaleia, dor abdominal, e dor em membros

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A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano (ou potencial de dano) tissular, sendo extremamente subjetiva. Pode ser aguda ou, quando tem duração maior que 3 meses, torna-se crônica. Dores crônicas podem ser persistentes (não cessam) ou recorrentes (com períodos de sintomáticos e assintomáticos).

Conceito de dor recorrente

Pelo menos 3 episódios, num período mínimo de 3 meses, que interfere nas atividades habituais da criança.

Epidemiologia

  • Mais prevalente:
    • Na faixa dos 6-19 anos;
    • No sexo feminino.
  • As mais frequentes são:
    • Cefaleia (20,6%);
    • Dor em membros (15,4%);
    • Dor abdominal (14,4%).

Abordagem clínica

  • Interrogar na anamnese:
    • Há quanto tempo a criança tem a dor?
    • Como foi a primeira vez em que teve a dor?
    • Como é a dor?
    • Com que frequência ocorre?
    • Onde é a dor? Tem alguma irradiação?
    • Quando ocorrem os episódios?
    • Quais os fatores desencadeantes?
    • O que faz a dor melhorar ou piorar?
    • O quanto a dor atrapalha a vida da criança?
    • Que tratamentos costuma fazer quando tem a dor?
  • Crianças com dores recorrentes frequentemente tardam a buscar atendimento, de modo que elas e seus pais trazem bastante angústia. É importante que a anamnese traga perguntas abertas e ocorra num contexto de boa vinculação da criança ao sistema de saúde.
  • A caracterização adequada da dor pode levar várias consultas.
  • Sinais de alerta (red flags):
    • Existem manifestações sistêmicas e/ou comprometimento do estado geral associados à dor?
    • A dor tem tendência de piora ou persistência (aumento de frequência ou intensidade, refratariedade ao tratamento, etc)?
  • O exame físico deve ser completo, mas raramente será encontrada alguma alteração.

Cefaleias recorrentes

Costumam ser primárias, ou seja, enxaquecas ou cefaleias tensionais.

Alguns sinais de alerta (red flags) sugerem cefaleia secundária (ex.: lesões expansivas):

  • Idade ≤ 3 anos;
  • Desaceleração da velocidade de crescimento;
  • Alterações neurológicas;
  • Alterações oculares;
  • Vômitos recorrentes;
  • Mudança no padrão da cefaleia;
  • Cefaleia recorrente matinal ou noturna, que desperta a criança;
  • Cefaleia desencadeada por tosse ou esforço físico.

Mesmo em sua ausência, características atípicas podem indicar propedêutica mais extensa.

Dores em membros recorrentes

Dor de crescimento

  • Dor noturna recorrente em membros inferiores, mais comum entre 4-10 anos.
  • Não guarda relação com o crescimento, sua etiologia é desconhecida.
  • Trata-se de condição benigna e autolimitada.
  • Diagnóstico de exclusão.
  • Achados típicos:
    • Local: geralmente bilateral em coxas, panturrilhas, canelas, e parte posterior dos joelhos;
    • Temporalidade:
      • Fim da tarde ou durante a noite, podendo acordar a criança;
      • Ausente pela manhã;
      • Não se relaciona com atividade física;
      • Pode haver dias ou semanas assintomáticas;
    • Gravidade:
      • Melhora com massagens e/ou analgésicos;
      • Não se agrava com o passar do tempo.
    • Exame físico: normal.

Sinovite transitória do quadril

  • Principal causa de claudicação em crianças.
  • Dor à rotação interna do quadril.
  • Surge aos 2-8 anos de idade.
  • Etiologia desconhecida.
  • Exame físico normal.
  • Diagnósticos diferenciais:
    • Artrite idiopática juvenil;
    • Doença de Legg-Calvé-Perthes.

Sinais de alerta (red flags)

  • Dor unilateral;
  • Dor noturna;
  • Dor que surge durante o dia e se agrava com atividade física;
  • Dor com aumento de volume da articulação;
  • Dor articular presente de manhã, ao acordar;
  • Comprometimento do estado geral e manifestações sistêmicas.

Dores abdominais recorrentes

Conceito e classificação

Diagnosticada quando a criança apresenta 3 ou mais episódios de dor abdominal, há pelo menos 3 meses, de intensidade suficiente para interromper a atividade habitual. Entre as crises, a criança não possui sintomas.

É classificada em 3 subgrupos:

  • Dor abdominal crônica: possui longa duração (> 3 meses), com padrão contínuo ou intermitente;
  • Dor abdominal orgânica: ocorre associada a causa anatômica, inflamatória, ou de dano tecidual;
  • Dor abdominal funcional: ocorre na ausência de causa anatômica, inflamatória, ou de dano tecidual.

Fisiopatologia

Dor orgânica

Associada a lesões específicas da doença subjacente.

Dor funcional

  • Envolvimento do eixo cérebro-intestino;
  • Hiperalgesia visceral;
  • Distúrbios de motilidade intestinal;
  • Predisposição genética;
  • Disbiose intestinal;
  • Relação com doenças infecciosas (principalmente gastroenterites agudas);
  • Perfil psicológico (ansiedade, depressão, baixa autoestima) e estressores ambientais.

História natural e epidemiologia

  • Picos etários:
    • 4-6 anos;
    • 7-12 anos;
  • Funcional em 90-95% dos casos;
  • Fator de risco para SII na vida adulta.

Exame clínico

  • Características da dor: localização, intensidade, frequência, periodicidade, relação com alimentação, dor noturna, interferência com atividades habituais, fatores precipitantes;
  • Sintomas GI: pirose, saciedade precoce, empachamento pós-prandial, náuseas, vômitos, diarreia, constipação, tenesmo, sangramentos digestivos, icterícia;
  • Sintomas de outros sistemas: sintomas urinários, cefaleia, sonolência após crises de dor, artralgias/artrites, tosse crônica, asma, respiração oral;
  • Sinais de comprometimento orgânico: perda de peso, retardo no crescimento, retardo puberal, palidez, febre;
  • Medicações em uso ou utilizadas: antibióticos, AINEs, corticoides;
  • História alimentar: leite e produtos lácteos, sucos naturais e artificiais, bebidas gaseificadas, balas e chicletes, irritantes gástricos (condimentos picantes, alguns alimentos industrializados), fibra;
  • História familiar: doenças do TGI ou de outro sistema que evolua com dor abdominal, enxaqueca, manifestações alérgicas, tuberculose, quadros depressivos;
  • História pregressa: infecção viral recente, trauma abdominal, cirurgia prévia;
  • História psicossocial: perfil psicológico e comportamental da criança, situações geradoras de ansiedade;
  • Exame físico geral: peso, estatura, velocidade de crescimento, estágio puberal;
  • Exame físico abdominal: localização da dor, massas, fígado, baço, loja renal, avaliação perianal e toque retal.

Caracterização típica da dor funcional

  • Dor periumbilical ou epigástrica, com rara irradiação;
  • Dura de minutos a horas, com caráter intermitente;
  • Normalmente ocorre durante o dia, com intensidade suficiente para causar choro e interromper atividades habituais;
  • Sintomas neurovegetativos (palidez, sudorese, náuseas, vômitos) podem ocorrer.
  • Critérios diagnósticos
    • Criança sem alteração ao exame clínico e complementar;
    • Preencher os critérios de Roma IV para algum dos quadros:
      • Dispepsia funcional;
      • SII;
      • Enxaqueca abdominal;
    • Sinais e sintomas não atribuídos a outra entidade.

Sinais de alerta

  • Dor que acorda o paciente à noite ou que interrompe as atividades prazerosas;
  • História familiar de DII, doença celíaca, ou doença péptica;
  • Dor com irradiação;
  • Dor persistente em quadrante superior ou inferior direito;
  • Dor antes dos 4 anos;
  • Disfagia;
  • Odinofagia;
  • Vômitos persistentes;
  • Sangramento GI;
  • Diarreia noturna;
  • Doença perianal;
  • Perda ponderal involuntária;
  • Desaceleração do crescimento linear;
  • Atraso da puberdade;
  • Febre inexplicada;
  • Anorexia;
  • Adinamia;
  • Disúria;
  • Anemia;
  • Aftas recorrentes;
  • Erupções de pele;
  • Artrite;
  • Vísceromegalias.

Diagnósticos diferenciais

  • Constipação intestinal:
    • Dor em cólica;
    • Massa fecal palpável;
  • DRGE e úlceras:
    • Dor epigástrica em adolescentes;
    • Dor mesogástrica em escolares;
  • Intolerância à lactose:
    • Aumento da frequência evacuatória;
    • Fezes liquefeitas, explosivas;
    • Cólicas;
    • Distensão abdominal;
  • Alergia à PLV:
    • Lactentes jovens;
    • Cólicas;
    • Refluxo;
    • Diarreia com raias de sangue nas fezes;
    • Sintomas respiratórios;
    • Dermatite atópica;
  • Parasitoses:
    • Giardíase;
    • Esquistossomose;
    • Estrongiloidíase;
    • Teníase;
    • Tricocefalíase;
    • Oxiuríase;
  • Doença celíaca:
    • Diarreia;
    • Desnutrição;
    • Sintomas atípicos;
  • Má rotação ou invaginação intestinal:
    • Dor;
    • Distensão;
    • Vômitos;
  • Anemia falciforme;
  • Dismenorreia:
    • Cólica;
    • Dor em abdome inferior;
    • Adolescentes;
  • Uso de medicamentos;
  • Doenças renais: dor em flanco;
  • DII:
    • Febre;
    • Diarreia;
    • Presença de sangue nas fezes;
    • Comprometimento do crescimento;
  • Doenças reumatológicas;
  • Tuberculose;
  • Doenças pancreáticas e das vias biliares: dor que irradia para o dorso;
  • DM tipo 1;
  • Neoplasias abdominais;
  • Púrpura de Henoch Shonlein;
  • Aderências cirúrgicas.

Propedêutica

  • Rotina:
    • Hemograma;
    • Urina rotina;
    • Parasitológico de fezes;
    • Sorologia para doença celíaca (IgA e antitransglutaminase IgA);
  • A depender da história:
    • VHS e PCR;
    • Função tireoidiana;
    • Amilase;
    • Lipase;
    • Teste terapêutico de remoção da lactose;
  • Em caso de suspeita de causa orgânica: USG abdominal.

Tratamento da dor abdominal funcional

  • Abordagens dietéticas ainda não possuem consensos científicos;
  • Farmacoterapia:
    • Antidepressivos (em caso de depressão comórbida);
    • Dispepsia funcional:
      • Antagonista de receptores H2 e IBPs;
      • Antidepressivos tricíclicos em baixa dosagem;
      • Procinéticos;
    • Enxaqueca abdominal: profilaxia medicamentosa (ciproeptadina, amitriptilina, propranolol, pizotifeno, flunarizina);
  • Suporte psicológico:
    • Assegurar quadro benigno à família;
    • Reconhecer a dinâmica familiar;
    • Estimular a aquisição, pela criança, de habilidades verbais para o relato da dor;
    • Diário da dor (identificação de fatores desencadeantes);
    • Explicar que, apesar de possível causa psicológica, a dor é real;
  • Psicoterapia (terapia cognitivo comportamental);
  • Exercício físico.

Referência(s)

Aula das professoras Flávia Cristina de Carvalho Mrad e Paula Valladares Guerra Resende.


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