Memória em psiquiatria: o que é? Como se altera? Como examinar? Como se apresenta nos transtornos mentais?

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Aprendizado é o processo pelo qual adquirimos conhecimento sobre o mundo, enquanto a memória representa o armazenamento desse conhecimento.

Etapas do processo mnêmico

Fixação

  • Refere-se à aquisição de novas informações.
  • Depende da preservação do nível de consciência, da atenção, da sensopercepção, e da capacidade de apreensão.
  • Ficam-se mais facilmente informações que despertam nosso interesse, que possuem maior conotação emocional, que têm caráter de novidade, que podem ser associadas a informações anteriormente adquiridas, e que envolvem mais de um canal sensorial simultaneamente.
  • Depende fundamentalmente do hipocampo.

Conservação

  • Refere-se à manutenção latente das informações fixadas.
  • Informações conservadas vão, ao longo do tempo, se perdendo, das mais recentes para as mais antigas, das mais complexas para as mais simples, e das menos organizadas para as mais organizadas.

Evocação

  • Refere-se ao retorno, voluntário ou não, à consciência das informações armazenadas. No caso das memórias implícitas, corresponde à expressão comportamental do aprendizado prévio.
  • Evocação nunca é idêntica à imagem perceptiva fixada: cada vez que evocamos, reconstruímos, com alterações, a imagem armazenada.
  • Está relacionada ao hipocampo, ao tálamo, e ao lobo frontal.

Classificação das memórias

Memória sensorial

  • Dura menos de um segundo, permanecendo ativa apenas o tempo necessário para se dar a percepção.
  • É mais propriamente uma função da atenção que da memória.

Memória de curto prazo (de trabalho)

  • Tem capacidade de armazenamento limitada.
  • Dura de segundos a minutos.
  • Armazena temporariamente informações (oriundas de estímulos ou da evocação de memórias de longo prazo) para a realização de tarefas cognitivas.
  • Está relacionada ao córtex pré-frontal, possivelmente também ao cerebelo, e depende da ativação de receptores dopaminérgicos D1.

Memória de longo prazo

  • Memória de curto prazo é armazenada no longo prazo por meio da consolidação. Facilitada pela repetição da informação, necessita de 5 a 10 minutos para que ocorra minimamente e de pelo menos 60 para que ocorra plenamente.
  • Representa o armazenamento permanente de informações.
  • Tem grande capacidade.

Memória explícita

Representa informações acessíveis à consciência, que podem ser acessadas pela consciência.

Memória episódica

  • Refere-se a eventos autobiográficos: vivências pessoais do indivíduo, vinculadas a determinado local e ocasião.
  • Associada ao hipocampo, ao diencéfalo, ao giro do cíngulo, e às regiões anteromediais e posterolaterais do córtex pré-frontal.

Memória semântica

  • Refere-se a conhecimentos factuais.
  • Associada a várias áreas cerebrais simultaneamente.

Memória implícita

  • Trata-se do aprendizado de como desempenhar atividades, e expressa-se na melhora desse desempenho.
  • É uma memória automática e reflexa, que não pode ser expressa em palavras e independe da recuperação consciente das experiências produtoras do aprendizado.
  • Podem resultar da repetição de memórias explícitas, até que instruções recordadas conscientemente tornem-se um processo automático.

Memória de procedimento

  • Refere-se a práticas e habilidades motoras.
  • Relacionada aos núcleos da base

Condicionamento clássico

  • Baseia-se no pareamento do estímulo incondicionado (forte, naturalmente eficaz na produção de determinada resposta) a um estímulo condicionado (fraco, ineficaz para produção de resposta).
  • Se uma campainha for apresentada repetidas vezes antes do alimento, a campainha passa a ser capaz de provocar num animal a salivação que o alimento provocaria.
  • Relacionado à amígdala (respostas emocionais) e ao cerebelo (respostas motoras).

Condicionamento operante

Baseia-se na oferta de estímulos como reforços e punições a comportamentos.

Aprendizagem não associativa

  • Expõe-se um animal a um estímulo único (habituação) ou a dois estímulos sem relação mútua (sensibilização). A habituação provoca diminuição da resposta a estímulos inócuos repetitivos, enquanto a sensibilização consiste na intensificação de respostas a estímulos que ocorrem após um estímulo nocivo intenso.
  • Relacionada às vias reflexas.

Pré-ativação

  • Exposição prévia ao estímulo favorece seu reconhecimento posterior a partir de fragmentos dele.
  • Relacionada ao neocórtex.

Alterações quantitativas

Amnésia anterógrada

  • Consiste na impossibilidade (ou dificuldade, no caso da hipomnésia) de formar novas lembranças de longo prazo a partir do momento em que o agente patogênico atuou como tal.
  • Indivíduos nessa condição costumam perder objetos, esquecer recados que deveriam transmitir, esquecer de pessoas que acabaram de conhecer, perder-se na rua, e ter dificuldade de registrar a data corrente.

Amnésia retrógrada

  • Impossibilidade (ou dificuldade, no caso da hipomnésia) de recordar eventos anterior à atuação do agente patogênico.
  • Afeta mais a recordação de eventos recentes do que de remotos.
  • Costuma estar associada à amnésia anterógrada.

Amnésia retroanterógrada

  • Forma mais comum.
  • Característica de quadros demenciais e do delirium, podendo ocorrer também após traumatismos cranioencefálicos e aplicações de ECT.

Amnésia generalizada

  • Afeta todas as recordações de grande parte do passado, podendo compreender até mesmo a vida inteira do sujeito.
  • Pouco frequente.

Amnésia lacunar

Falha de memória que abrange especificamente determinado espaço de tempo, durante o qual houve prejuízo da capacidade de fixação.

Amnésia seletiva

Perda de lembranças que têm conteúdo e/ou significado afetivo em comum.

Hipermnésia anterógrada

  • Capacidade exagerada de armazenamento de novas informações.
  • Geralmente restrita a uma habilidade específica.
  • Pode ocorrer em indivíduos normais, mas é mais frequente em indivíduos com retardo mental e em autistas. Nesses, nem sempre há compreensão do significado do que está sendo fixado.

Hipermnésia retrógrada

  • É evocado um excesso de recordações em um breve espaço de tempo.
  • Lembranças costumam ser pouco claras e precisas.
  • Não há controle voluntário sobre as lembranças evocadas.

Hipermnésia lacunar

Observada em pacientes com transtorno de pânico, especialmente em rememoração do primeiro ataque, e no estresse pós-traumático, em relação ao evento traumático.

Hipermnésia seletiva

Ocorre na depressão, quanto a fatos dolorosos, na mania, em relação a sucessos pessoais, e em quadros delirantes, quanto a fatos que confirmem o juízo patológico.

Alterações qualitativas

Alomnésia

Ilusão de memória, com deturpação involuntária de recordações.

Paramnésia

  • Alucinação de memória, com recordação de algo que não ocorreu de fato, embora o paciente creia que a lembrança é real.
  • Memórias alucinatórias podem ser mais vívidas que memórias reais.
  • Fabulação: termo normalmente referente a alucinações de memória que ocorrem em quadros amnésicos de origem orgânica.
  • Raramente experimentadas por pessoas normais, embora crianças sejam facilmente sugestionáveis ao desenvolvimento de falsas memórias. Mais frequentes na esquizofrenia.

Déjà vu

  • Indivíduo tem uma sensação de familiaridade diante de uma situação inteiramente nova.
  • Pode haver crítica, por parte do próprio indivíduo, em relação a esses fenômenos.

Jamais vu

  • Indivíduo tem uma sensação de desconhecimento diante de situação familiar.
  • Pode haver crítica, por parte do próprio indivíduo, em relação a esses fenômenos.

Criptomnésia

Falha relativa ao reconhecimento de algo como pretérito, implicando na percepção de uma recordação como algo novo.

Ecmnésia

Recordação intensa do passado, fazendo com que o paciente se comporte como se um evento pretérito estivesse ocorrendo naquele momento.

Exame da memória

  • No diálogo com o paciente, observar sua capacidade de precisar detalhes de fatos narrados e ordená-los cronologicamente já fornece uma estimativa sobre sua memória.
  • Perda frequente de objetos, repetição acrítica das mesmas ideias em diálogos com as outras pessoas, dificuldade de recordação do nome do médico ou de localização do próprio leito, desorientação no tempo e no espaço, e falso reconhecimento de pessoas são indícios comportamentais de hipomnésia.
  • Testes formais:
    • Testagem da evocação de dados recentes;
    • Testagem da evocação de dados remotos;
    • Testagem da memória de fixação;
    • Avaliação neuropsicológica formal.

Memória nos principais transtornos mentais

Mania

  • Há hipermnésia de evocação e fixação, resultantes de estado de hipotenacidade e hipermobilidade de atenção. Posteriormente, isso pode resultar em hipomnésia lacunar.
  • Podem ocorrer alomnésias, com distorção de recordações em função de ideias de grandeza.

Depressão

  • Desinteresse em relação ao mundo externo provoca redução da capacidade de fixação.
  • Quando a inibição psíquica é intensa. Há também hipomnésia de evocação.
  • Há hipermnésia seletiva em relação a fatos ruins.
  • Há alomnésias no sentido de um conteúdo de tristeza, culpa, ou ruína.

Esquizofrenia

  • Quadros de apatia ou de agitação podem causar hipomnésia de fixação.
  • Há hipermnésia seletiva para fatos que confirmam delírios e hipomnésia para os que contradizem-nos.
  • Lembranças podem ser distorcidas ou criadas em consonância com a temática delirante.
  • Testagens neuropsicológicas detalhadas evidenciam distúrbios de memória semelhantes aos encontrados em demências.

Delirium

Hipotenacidade de atenção leva a hipomnésia de fixação, que resulta em posterior hipomnésia lacunar.

Demência

  • Predomina hipomnésia de fixação, mas há comprometimento também da memória de evocação.
  • Paciente não costuma ter consciência de seu déficit mnêmico.
  • São comuns alomnésias e paramnésias.
  • Memória explícita é mais alterada que implícita, e memória episódica é mais alterada que semântica.

Transtorno amnésico

Observam-se hipomnésia de fixação, desorientação temporoespacial, e fabulação.

Retardo mental

  • Se houver dano cerebral, prejuízo mnêmico é semelhante ao das demências.
  • Alguns indivíduos podem apresentar hipermnésia de fixação.

Autismo

10% dos autistas apresentam ilhas de habilidades, que costumam incluir hipermnésia de fixação.

Epilepsia

  • Em estados crepusculares, pode haver hipomnésia de fixação, hipermnésia de evocação, déjà vu, e ecmnésia.
  • Há amnésia lacunar referente aos períodos de abolição da consciência que ocorrem nas crises generalizadas.

Transtornos dissociativos

  • Alterações de memória na histeria dissociativa são reversíveis.
  • Amnésia pode ser seletiva, lacunar, ou generalizada. Geralmente é retrógrada, mas pode ser retroanterógrada.
  • Podem ocorrer ecmnésias em casos de sonambulismo.

Transtorno de estresse pós-traumático

  • Há hipermnésia retrógrada em relação ao trauma, que se expressa através de pensamentos ou imagens intrusivas.
    • A liberação de epinefrina, norepinefrina, e cortisol em situações de estresse poderia explicar isso, visto que esses neuropeptídeos melhoram a memória explícita.
  • Episódios dissociativos com ecmnésia podem estar presentes.
  • Algumas vezes, é observada amnésia em relação a aspectos importantes do evento traumático.
    • O cortisol excessivo liberado no hipocampo poderia ser o responsável por destruição de células hipocampais, causando essa amnésia.

Referência(s)

CHENIAUX, Elie, Manual de psicopatologia, 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021.


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