Resumo de medicina legal – Aborto e infanticídio: quais os casos em que o aborto é permitido? Qual a função do médico? O que é infanticídio?

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Marcos temporais médico-legais

Os conceitos jurídicos não equivalem aos médicos, mas são necessários para tipificar os crimes relacionados à gestação.

  • Marcos da gestação:
    • Gestação: da nidação à ruptura da bolsa;
    • Parto: da ruptura da bolsa à dequitação;
    • Puerpério: da dequitação ao retorno às condições anteriores.
  • Marcos do neonato:
    • Natimorto: falecido após a 22ª semana ou possuindo 500 g;
    • Feto nascente: intraparto, sem respiração;
    • Infante nascido: respirou, não recebeu nenhum cuidado da família (pode ter recebido cuidado médico);
    • Recém-nascido: desde os primeiros cuidados até o 7º dia de vida.

Aborto

Crime de aborto

O Brasil entende o aborto voluntário, sem justificativas, como um crime. Tipifica-se crimes distintos para quem provoca em si aborto ou provoca em outrem aborto (com ou sem consentimento), conforme os artigos 124 a 127 do Código Penal:

Art. 124 – Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

Pena – detenção, de um a três anos.

Art. 125 – Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de três a dez anos.

Art. 126 – Provocar aborto com o consentimento da gestante:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

Art. 127 – As penas cominadas nos dois artigos anteriores são aumentadas de um terço, se, em conseqüência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofre lesão corporal de natureza grave; e são duplicadas, se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevém a morte.

No art. 124, a gestante responde. Já no 125 e no 126, quem executa o aborto responde. O crime de autoaborto tem pena mais leve, pois a lei compreende que a decisão da gestante por um aborto, mesmo que voluntária e criminosa, já tem um peso e uma dificuldade intrínsecos.

Vale ressaltar que gestantes que viajam para abortar em outros países não são puníveis, pois a lei brasileira tem vigência apenas em território nacional.

Excludentes de ilicitude

Aborto necessário

No caso do aborto necessário, terapêutico, ou profilático, não há crime, conforme o art. 128 do Código Penal:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante.

Ressalta-se que o único profissional autorizado a realizar esse tipo de aborto é o médico, nem a própria gestante pode realizá-lo.

A lei também não menciona consentimento, porque, em situações de emergência, independentemente da vontade da mãe, a conduta médica deverá ser de priorizar sua vida em detrimento da do feto. Além disso, qualquer emergência médica dispensa consentimento prévio, pela necessidade de ações imediatas. O consentimento é diferido, ou seja: após o ato, o paciente precisa ser informado do que ocorreu e por que.

Ainda, o perigo de vida que a gravidez representa para a gestante precisa ser iminente. Não se trata de uma possibilidade futura, de um aumento de risco, ou de uma hipótese, mas de perigo presente, morte próxima.

Aborto humanístico

Ainda segundo o art. 128, também o aborto humanístico é aceitável:

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Não há, nesse caso, obrigação de reportar o aborto à autoridade policial. Há, no entanto, obrigatoriedade de notificar o estupro. Também não há necessidade de prova do estupro. A Portaria 1508/2005 do Ministério da Saúde afirma que:

Art. 2º  O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei compõe-se de quatro fases que deverão ser registradas no formato de Termos, arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a confidencialidade desses termos.

Art. 3º  A primeira fase é constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado pela própria gestante, perante dois profissionais de saúde do serviço.

Parágrafo único.  O Termo de Relato Circunstanciado deverá ser assinado pela gestante ou, quando incapaz, também por seu representante legal, bem como por dois profissionais de saúde do serviço, e conterá:

I – local, dia e hora aproximada do fato;

II – tipo e forma de violência;

III – descrição dos agentes da conduta, se possível; e

IV – identificação de testemunhas, se houver.

Art. 4º  A segunda fase dá-se com a intervenção do médico que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver.

§ 1º  Paralelamente, a mulher receberá atenção e avaliação especializada por parte da equipe de saúde multiprofissional, que anotará suas avaliações em documentos específicos.

§ 2º  Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico.

§ 3º  A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo.

Art. 5º  A terceira fase verifica-se com a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse Termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima de violência sexual.

Art. 6º  A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que obedecerá aos seguintes requisitos:

I – o esclarecimento à mulher deve ser realizado em linguagem acessível, especialmente sobre:

a) os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde;

b) os procedimentos que serão adotados quando da realização da intervenção médica;

c) a forma de acompanhamento e assistência, assim como os profissionais responsáveis; e

d) a garantia do sigilo que assegure sua privacidade quanto aos dados confidenciais envolvidos, exceto quanto aos documentos subscritos por ela em caso de requisição judicial;

II – deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela gestante ou, se for incapaz, também por seu representante legal; e

III – deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.

Completa o parecer CRM-MG 152/2018:

Nesse caso há necessidade de autorização da mulher por escrito, sem necessidade de realização de perícia pelo IML. A apresentação de documento oficial comprovando o alegado estupro, autorização judicial ou certidão médico-legal, é uma forma de o médico garantir que o que está sendo afirmado de fato ocorreu, evitando problemas legais futuros. [O] Código Penal não exige qualquer documento – boletim de ocorrência policial, laudo do IML ou autorização judicial – para a prática do abortamento no caso de estupro, a não ser o consentimento da mulher; mas a mulher deve ser orientada a procurar a polícia para que o crime seja investigado. A interrupção da gravidez em mulheres grávidas por violência sexual com peso do feto previsto de até 500 gramas, (pode ser feito até a 20a ou 22a semana de gestação).

Em 2020, foram publicadas pelo Ministério da Saúde as Portarias 2282 e 2561, revogadas em 2023. Elas estabeleciam obrigatoriedade de oferecer à gestante possibilidade de visualizar o exame ultrassonográfico do feto e de preservação e envio às autoridades de evidências de violência sexual, respectivamente.

Se houver indícios de que não houve estupro (ex.: idade gestacional calculada pelo ultrassom não é condizente com a data em que a gestante alega que foi estuprada), o médico também pode recusar-se a realizar o procedimento, mas a paciente pode procurar outro serviço.

Procedimento

Em qualquer caso de aborto legal, o SUS tem a obrigação de garantir à mulher acesso, independentemente de idade gestacional, sem necessidade de autorização judicial. Qualquer serviço pode realizar aborto, desde que tenha equipe multiprofissional.

No entanto, o conceito médico de aborto é limitado à interrupção da gestação até a 22ª semana ou 500 g de peso fetal, gerando insegurança jurídica. Alguns serviços exigem autorização para fazê-lo a partir da 22ª semana.

Escusa de consciência

O médico tem direito de se recusar a praticar o aborto, desde que não seja uma situação emergencial em que ele é o único médico capacitado disponível. Deve, no entanto, encaminhar a paciente a um serviço que realize o aborto, e cabe ao poder público garantir que ela tenha acesso de alguma forma.

No entanto, o direito de escusa é do médico, não da instituição. Nenhuma instituição pode se recusar a realizar abortos, ou penalizar médicos por se recusarem a fazê-lo (dentro dos conformes da lei).

Sigilo médico

O direito ao sigilo médico advém do direito do paciente à autonomia, e só pode ser descumprido por justa causa, ou seja, caso o benefício à coletividade se sobreponha. Uma mulher que provoca em si aborto e procura atendimento médico não oferece riscos à coletividade, e, portanto, não deve ser denunciada. O STJ entende como inválido o processo de aborto iniciado por denúncia oriunda de quebra de sigilo profissional.

Aborto em caso de malformações congênitas

Aspectos bioéticos

O Código Penal data de 1940. Desde então, os avanços médicos permitiram diagnóstico pré-natal de anomalias congênitas, algumas incompatíveis com a vida. Isso não se enquadraria no conceito de aborto humanitário?

Por outro lado, em países em que o aborto é lícito, é frequente a interrupção seletiva de gestações de fetos com malformações congênitas compatíveis com a vida, ou de possibilidade incerta de sobrevida. Isso não seria uma prática eugenista?

Anencefalia

A anencefalia aumenta risco de complicações maternas (polidrâmnio, descolamento prematuro de placenta, distócias no parto, menor involução uterina no pós-parto imediato), além de ser psicologicamente impactante.

Em 2012, na ADPF 54, o STF entendeu que somente o feto com capacidade de ser pessoa pode ser sujeito passivo do crime de aborto. O feto anencéfalo, embora tenha vida biológica (seus órgãos funcionam), jamais terá vida biográfica (identidade pessoal). Sobrepõe-se, então, os princípios de dignidade, liberdade, autodeterminação, e saúde maternas. É permitida a antecipação terapêutica do parto.

Para tal, a Resolução 1989/2012 do CFM determina as condições para a interrupção da gestação, em caso de anencefalia:

Art. 1º Na ocorrência do diagnóstico inequívoco de anencefalia o médico pode, a pedido da gestante, independente de autorização do Estado, interromper a gravidez.

Art. 2º diagnóstico de anencefalia é feito por exame ultrassonográfico realizado a partir da 12ª (décima segunda) semana de gestação e deve conter:

I – duas fotografias, identificadas e datadas: uma com a face do feto em posição sagital; a outra, com a visualização do polo cefálico no corte transversal, demonstrando a ausência da calota craniana e de parênquima cerebral identificável;

II – laudo assinado por dois médicos, capacitados para tal diagnóstico.

Art. 3º Concluído o diagnóstico de anencefalia, o médico deve prestar à gestante todos os esclarecimentos que lhe forem solicitados, garantindo a ela o direito de decidir livremente sobre a conduta a ser adotada, sem impor sua autoridade para induzi-la a tomar qualquer decisão ou para limitá-la naquilo que decidir:

§2º Ante o diagnóstico de anencefalia, a gestante tem o direito de:

I – manter a gravidez;

II – interromper imediatamente a gravidez, independente do tempo de gestação, ou adiar essa decisão para outro momento.

§3º Qualquer que seja a decisão da gestante, o médico deve informá-la das consequências, incluindo os riscos decorrentes ou associados de cada uma.

§4º Se a gestante optar pela manutenção da gravidez, ser-lhe-á assegurada assistência médica pré-natal compatível com o diagnóstico.

§5º Tanto a gestante que optar pela manutenção da gravidez quanto a que optar por sua interrupção receberão, se assim o desejarem, assistência de equipe multiprofissional nos locais onde houver disponibilidade.

§6º A antecipação terapêutica do parto pode ser realizada apenas em hospital que disponha de estrutura adequada ao tratamento de complicações eventuais, inerentes aos respectivos procedimentos. Art. 5º Realizada a antecipação terapêutica do parto, o médico deve informar à paciente os riscos de recorrência da anencefalia e referenciá-la para programas de planejamento familiar com assistência à contracepção, enquanto essa for necessária, e à preconcepção, quando for livremente desejada, garantindo-se, sempre, o direito de opção da mulher.

Parágrafo único. A paciente deve ser informada expressamente que a assistência preconcepcional tem por objetivo reduzir a recorrência da anencefalia.

Aspectos jurídicos

A decisão do STF sobre anencefalia abriu margem para que mulheres fizessem pedidos judiciais de aborto por malformações incompatíveis com a vida. Alguns são aceitos, outros não. Isso gera uma situação em que não há isonomia.

Infanticídio

É o crime tipificado pelo art. 123 do Código Penal:

Art. 123 – Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após:

Pena – detenção, de dois a seis anos.

Estado puerperal e delictum exceptum

Trata-se de crime privilegiado (delictum exceptum), com pena leve, que, por sua definição, pode ser cometido apenas pela mãe. Entende-se que a mulher está sob alteração psíquica.

O que é o estado puerperal? É um conceito jurídico, não médico, e há controvérsia se é realmente válido, pois não tem critérios claros. Caso a mulher não esteja sob esse estado, ela é homicida, não infanticida. Nem toda puérpera passará pelo estado puerperal.

A infanticida é uma mulher que desejou sua gravidez, mas que, quando o bebê nasceu, sem se dar conta, o matou. Ao perceber seu crime, se desespera, pede ajuda, não se recorda do que fez, e não esconde o cadáver. É diferente, por exemplo, de uma mulher que matou seu filho por não tê-lo desejado.

É, também, uma mulher sem diagnóstico psiquiátrico, pois, caso tivesse um transtorno que alterasse sua razão a ponto de levá-la a matar o próprio filho, seria inimputável. Na prática, essa distinção nem sempre é feita clara.

Perícia no infanticídio

Avaliação do ocorrido

  • Diagnóstico do tempo de vida do concepto;
  • Diagnóstico do nascimento com vida (um natimorto não pode ter sido morto pela mãe);
  • Diagnóstico do mecanismo de morte do conceito (mais comuns: asfixia e TCE);
  • Diagnóstico do estado puerperal;
  • Diagnóstico de parto recente na puérpera.

Exame da puérpera

  • Existência de parto recente;
  • Condições do parto (angustiante ou doloroso);
  • Se a puérpera tem lembrança ou simula ignorar o corrido (a infanticida verdadeiramente não se lembra);
  • Se a puérpera tentou esconder o cadáver do filho;
  • Se a puérpera tem transtorno mental prévio.

Exame do neonato

Consiste em avaliar o estágio de vida em que foi morto. Apenas o feto nascente e o infante nascido sofrem infanticídio, recém-nascidos sofrem homicídio.

  • Indícios de que ainda não houve cuidados:
    • Estado sanguinolento;
    • Vérnix caseoso;
    • Cordão umbilical;
    • Mecônio.
Bebê recoberto por vérnix caseoso (fonte).
  • Indícios de que houve vida extrauterina:
    • Docimásia hidrostática pulmonar de Galeno: deve ser feita até 24 h após a morte (antes da fase gasosa da putrefação), sem que tenha havido manobras de ressuscitação pulmonar, para evitar falsos positivos. Tem 4 fases, que seguem uma ordem. Se houver uma fase positiva, significa que houve respiração (dispensam-se as seguintes). Consistem em testar a flutuação de partes do cadáver, sendo as fases:
      • (1) bloco cardiopulmonar, língua, timo;
      • (2) pulmões isolados do bloco;
      • (3) fragmentos dos pulmões;
      • (4) desprendimento de finas bolhas gasosas à compressão dos fragmentos pulmonares;
    • Docimásia histológica de Balthazard: exame histológico, feito à microscopia, por patologista, que indica insuflação pulmonar, de forma mais fidedigna que a docimásia hidrostática de Galeno;
    • Docimásia diafragmática de Ploquet: rebaixamento diafragmático;
    • Docimásia óptica ou visual de Boucher: pulmões insuflados, com mosaico alveolar evidente;
    • Docimásia gastrointestinal de Breslau.
  • Ponto de Beclard: ponto de ossificação na epífise distal do fêmur, que só ossifica se o feto estiver vivo às 36 semanas de gestação. Se estiver presente, mesmo que o feto tenha nascido morto, significa que a morte foi após 36 semanas.

Referência(s)

Aulas da professora Luciana de Paula Lima Gazzola.


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