A entrevista psiquiátrica é distinta da anamnese tradicional, porque é mais longa, exige avaliação do estado mental, e pode, por si só ser terapêutica. Sua metodologia é bastante particular.
Técnica da entrevista psiquiátrica
- Objetivos básicos da entrevista:
- Formulação de diagnóstico;
- Formulação de prognóstico;
- Planejamento terapêutico;
- Estabelecimento da aliança terapêutica médico-paciente.
- No início da entrevista, o médico deve apresentar-se, explicar o objetivo da entrevista, e obter o consentimento do paciente. Se o paciente não tiver consciência de sua morbidade, é importante também que sejam entrevistados familiares e/ou outras pessoas capazes de prestar informações, de preferência com a concordância e a presença do paciente.
- Orientações gerais:
- Ao escrever registros, explicar ao paciente por que isso está sendo feito, e não permitir que isso prejudique o contato visual;
- Deixar, inicialmente, que o paciente fale livremente, para depois perguntar especificamente sobre temas ou pontos duvidosos;
- Interromper o paciente sem cortar o fluxo da comunicação, mas sem deixar que minuciosidade ou prolixidade prejudiquem a obtenção da história clínica;
- Não formular as perguntas de maneira monótona ou mecânica, mantendo o diálogo informal;
- Evitar perguntas sugestivas e/ou fechadas (de “sim ou não”);
- Não aceitar jargões fornecidos pelo paciente – pedir que ele explique o que quer dizer com palavras como “nervoso”, “deprimido”, ou “em pânico”;
- Utilizar linguagem acessível.
Elementos da anamnese psiquiátrica
Identificação
- Nome;
- Idade;
- Estado civil e filhos;
- Ocupação;
- Naturalidade, residência, e procedência;
- Origem do encaminhamento (se houver).
Queixa principal
Constitui o foco da HMA. Deve ser registrada nas palavras do paciente (mesmo que absurdas) e, caso o paciente não formule queixa, isso também deve ser registrado, e deve ser adicionado o motivo da consulta nas palavras de um acompanhante.
O paciente pode ter mais de uma queixa, e, nesse caso, é interessante agrupar queixas que estejam relacionadas entre si (ex.: tristeza e anedonia).
História da moléstia atual (HMA)
- Consiste no relato sobre:
- Duração: quando o problema começou;
- Desenvolvimento: como ele evoluiu;
- Modo de início: súbito ou insidioso;
- Curso: sintomas constantes, progressivos, ou intermitentes;
- Severidade: grau de sofrimento e prejuízo funcional do paciente;
- Sintomas associados: é importante rastrear sintomas das principais síndromes psiquiátricas, como hipotimia, mania, delírios e alucinações, ansiedade, pânico, fobias, obsessões, compulsões, uso de substâncias;
- Fatores precipitantes: histórico de estressores psicossociais.
- É narrada pelo paciente, pelo informante, ou por ambos (deve ser identificada a fonte). Priorizam-se, no registro, as palavras do paciente ou do informante.
- Deve ser registrada em ordem cronológica, mesmo que o relato tenha sido desordenado.
- Deve incluir informações pesquisadas ativamente pelo entrevistador e negativos pertinentes (sintomas cuja ausência possa ser significativa para o diagnóstico).
- Em casos de transtorno de personalidade ou de retardo mental, é impossível separar HMA e história pessoal, podendo ambas serem fundidas.
- Em casos de enfermidades crônicas, episódios psiquiátricos anteriores devem ser relatados na HMA.
História psiquiátrica
- Diagnósticos psiquiátricos atuais ou passados;
- Datas e durações de episódios anteriores;
- Tratamentos, incluindo medicação, psicoterapia, e ECT;
- Contato anterior com serviços de psiquiatria (ambulatoriais ou hospitalares);
- História de ideação suicida e/ou automutilação.
História clínica
- Patologias prévias: comorbidades, doenças prévias, e história de cirurgias/internações. Condições neurológicas (clínicas ou cirúrgicas), endocrinológicas, e infecciosas são especialmente relevantes;
- Medicações em uso: psiquiátricas ou não, incluindo suplementos, anticoncepcionais, e remédios sem necessidade de prescrição;
- Alergias;
- História ginecológica (mulheres):
- Menarca;
- Ciclos menstruais (incluindo DUM);
- Paridade (GPA);
- Menopausa.
Circunstâncias atuais
- Uso de substâncias: álcool, tabaco, e outras drogas, incluindo quantificação do uso;
- Sono: horas de sono, presença de insônia ou hipersonia;
- Alimentação: recordatório alimentar;
- Exercício físico: frequência, tipo, intensidade.
História social
- Moradia:
- Condições sanitárias;
- Pessoas com quem convive;
- Privacidade;
- Situação ocupacional e financeira;
- Atividades religiosas e políticas;
- Atividades de lazer;
- Antecedentes criminais.
História familiar
- Doenças psiquiátricas e não psiquiátricas de parentes:
- Morbidades psiquiátricas em familiares, incluindo suicídio e abuso de substâncias;
- Causas de morte de pais e irmãos;
- Doenças frequentes na família.
- Relações familiares atuais e pregressas:
- Ordem de nascimento e diferenças de idade entre irmãos;
- Relação com os pais e/ou criadores na infância;
- Relação atual com familiares próximos;
- Personalidade dos familiares;
- Atitude da família diante da doença do paciente.
História pessoal
Primeira infância
- Complicações na gestação, parto, ou período neonatal;
- Desenvolvimento psicomotor (especialmente marcos: marcha, fala, e controle esfincteriano);
- Doenças na infância;
- Comportamento (especialmente agressividade ou dificuldade de socialização);
- Jogos e brincadeiras;
- Ansiedade de separação.
Infância tardia e adolescência
- Aproveitamento escolar;
- História de abuso físico, sexual, ou emocional;
- Relacionamentos interpessoais (incluindo história de bullying, como vítima ou perpetrador).
História ocupacional
- Tipos e durações de empregos;
- Relacionamento com chefes, subordinados, e colegas;
- Desempenho (incluindo estabilidade e razões para demissões).
História conjugal e sexual
- Início da vida sexual e primeiros relacionamentos afetivos;
- Orientação sexual;
- Identidade de gênero;
- Detalhes sobre relacionamentos importantes, incluindo casamentos;
- Razões de términos e divórcios;
- Satisfação sexual;
- Número de parceiros;
- Frequência sexual;
- Parafilias.
Personalidade pré-mórbida
Consiste na personalidade do paciente antes do estabelecimento da doença psiquiátrica. Inclui aspectos como:
- Relacionamentos sociais;
- Interesses;
- Hábitos de lazer e culturais;
- Padrão de humor;
- Agressividade;
- Introversão/Extroversão;
- Egoísmo/Altruísmo;
- Independência/Dependência;
- Atividade/Passividade;
- Valores;
- Adaptação ao ambiente.
Exame do estado mental
- Começa no primeiro contato com o paciente, antes de se obterem os dados de identificação.
- Avalia-se quantitativa e qualitativamente as funções psíquicas, comparável ao exame físico na medicina geral.
- No registro, é útil descrever as condições de realização do exame.
- Para avaliação de algumas funções, podem ser necessárias perguntas específicas ou aplicação de testes.
- Não se deve incluir aspectos da história, ou seja, se o paciente relatar alguma alteração, mas ela estiver ausente no momento do exame, deve ser registrada como parte da anamnese, e não do exame do estado mental.
- É registrado na súmula psicopatológica.
Aparência
- Estado físico: semelhante à ectoscopia, podendo ser avaliada sudorese, peso, etc;
- Roupas e acessórios: adequação ao tempo e às circunstâncias, posse de objetos estranhos, limpeza das roupas;
- Estado de higiene: sinais como barba/depilação a fazer, cabelos despenteados, mau odor;
- Sinais de automutilação.
Atitude
- O paciente estabelece vínculo? Faz contato visual?
- Atitudes comuns:
- Cooperativa;
- Cordial;
- Desinteressada;
- Agressiva;
- Defensiva;
- Suspeitosa;
- Amedrontada;
- Perplexa;
- Preocupada;
- Desinibida.
Cognição
Inclui diversos aspectos, que podem necessitar de instrumentos diagnósticos mais específicos:
- Habilidades cognitivas gerais:
- Atenção;
- Consciência;
- Orientação alopsíquica (tempo e espaço);
- Habilidades cognitivas específicas:
- Função executiva;
- Linguagem;
- Memória;
- Percepção;
- Praxia.
Fala
- Velocidade de produção: logorreia na mania, pausas e pobreza de fala na depressão;
- Qualidade e fluxo de fala: volume, disartria, disprosódia, disfemia;
- Jogos de palavras: trocadilhos, rimas, e aliteração são vistos na mania.
Humor e afeto
- O humor é o estado emocional sustentado pelo paciente ao longo de um período de tempo, enquanto o afeto é a resposta emocional imediata e transiente aos estímulos.
- Avalia-se o humor questionando ao paciente como ele tem se sentido recentemente, enquanto o afeto pode ser avaliado observando postura, expressão facial, reatividade emocional, e fala dele.
- Componentes a se avaliar no afeto:
- Congruência entre afeto e humor;
- Alcance emocional (reduzido caso o paciente não demonstre intensidade normal em sua expressão emocional, com voz monótona e expressão facial mínima, por exemplo).
- Um humor lábil é aquele que flutua e alterna entre extremos.
Juízo/Insight
- Divide-se em juízo crítico/de realidade e juízo de morbidade.
- Altera-se num espectro, podendo ser bom, parcial, ou ruim.
- Deve esclarecer se o paciente:
- Consegue discernir o que é ou não real;
- Acredita que está doente;
- Acredita que sua doença é psiquiátrica;
- Acredita que necessita de tratamento.
Pensamento
- Alterações na forma:
- Pensamento circunstancial;
- Pensamento tangencial;
- Afrouxamento de associação;
- Fuga de ideias;
- Interrupção de pensamento.
- Alterações no conteúdo:
- Delírios: crenças desconectadas com a realidade, podendo ser:
- Primários ou secundários;
- Congruentes ou incongruentes com o humor;
- Bizarros ou não bizarros;
- De diversos conteúdos;
- Obsessões: pensamentos involuntários e desagradáveis que o paciente reconhece como próprios;
- Ideias supervalorizadas.
- Delírios: crenças desconectadas com a realidade, podendo ser:
Psicomotricidade
- Atividade motora associada a processos mentais, não incluindo alterações relacionadas a quadros musculoesqueléticas ou neurológicos.
- Alterações comuns:
- Tremores;
- Tiques;
- Espasmos;
- Catatonia.
- Pode alterar-se quantitativamente com retardo ou aceleração.
Sensopercepção
Alterações devem ser caracterizadas quanto a:
- Tipo:
- Alucinações;
- Pseudoalucinações;
- Ilusões;
- Pensamentos intrusivos;
- Modalidade sensorial acometida;
- Alucinações auditivas devem ser categorizadas entre:
- Elementares: um som simples e breve;
- Complexas:
- Primeira pessoa;
- Segunda pessoa;
- Terceira pessoa.
Outras funções
- Conação;
- Consciência do eu (orientação autopsíquica);
- Imaginação;
- Inteligência;
- Pragmatismo;
- Prospecção.
Exame físico
- Deve-se enfatizar os sistemas neurológico e endócrino a fim de descartar etiologias orgânicas para transtornos mentais.
- Pesquisar sinais relevantes para a história psiquiátrica (ex.: sinais de hepatopatia em alcoólatras, automutilação em pacientes com transtornos de personalidade, marcas de agulhas em usuários de drogas).
- Pesquisar efeitos colaterais de drogas psiquiátricas (ex.: obesidade, discinesia, hipotensão).
Diagnóstico psiquiátrico
Diagnóstico sindrômico
- Uma síndrome é uma associação de sinais e sintomas que evoluem em conjunto, provocada por mecanismos vários e dependente de causas diversas. Não é, portanto, caracterizada pela etiologia.
- Uma mesma entidade nosológica pode, em diferentes momentos, manifestar-se sob a forma de diferentes síndromes, e uma mesma síndrome pode estar presente em diferentes entidades nosológicas.
- Baseia-se principalmente no exame psíquico, podendo também ser levada em conta a HMA, desde que haja confiabilidade no relato.
- Exemplos de síndromes psiquiátricas:
- Ansiosa;
- Fóbica;
- Obsessiva-compulsiva;
- De conversão;
- Dissociativa;
- Hipocondríaca;
- Depressiva;
- Maníaca;
- Mista;
- Delirante-alucinatória;
- Delirante/Paranoide;
- Alucinatória;
- Hebefrênica/Desorganizada;
- Catatônica (hipercinética ou hipocinética);
- Apático-abúlica;
- De retardo mental;
- De autismo;
- Demencial;
- De delirium;
- Amnésica;
- Anoréxica;
- Bulímica;
- De despersonalização-desrealização.
- Síndromes podem estar combinadas.
Diagnóstico nosológico
- Trata-se do diagnóstico de uma doença específica.
- Leva em conta o CID-11 e o DSM-5. Ambos têm abordagem categórica. Embora os sintomas psiquiátricos existam num continuum, isso facilita a classificação na prática clínica.
- Baseia-se no quadro completo do paciente, e não apenas no exame psíquico. Idealmente, baseia-se mais na etiologia que nos sintomas.
Conduta
Propedêutica
Podem (não necessariamente devem) ser solicitados:
- Hemograma;
- Bioquímica sanguínea;
- Sorologia para sífilis;
- Exame do líquor;
- Neuroimagem cerebral;
- Eletroencefalografia;
- Estudos genéticos;
- Dosagens hormonais;
- Testagem neuropsicológica;
- Psicodiagnóstico.
Terapêutica
São relatadas as medidas que visam ao tratamento do paciente, como farmacoterapia, psicoterapia, e abordagens psicossociais.
Referência(s)
- CHENIAUX, Elie, Manual de psicopatologia, 6. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2021;
- MARWICK, Katie. Crash Course Psychiatry. 5. ed. Amsterdam: Elsevier Health Sciences, 2019.